Janilton Gabriel de Souza*
Em que residem nossas diferenças? Somos o contrário do outro? Ou apenas negamos a existência de uma parte?
Essas perguntas podem ser feitas por quem assistir ao filme recém-lançado “A Grande Muralha”, de Yimou Zhang. O roteirista foi genial ao trabalhar com a perspectiva de uma maldição recaída sobre os homens. O encontro de dois mercenários, Willian e Tovar, com os inimigos chineses é o ponto alto da trama, que se passa no século XV. Eles vivem em busca do “pó negro”. Ao se desvencilharem do ataque de uma criatura estranha, Willian e Tovar deparam-se com a Grande Muralha e lá são presos pelos guerreiros chineses. Estes, por sua vez, estão na iminência de sofrer um ataque de monstros, que a cada 60 anos vêm alimentar-se de seres humanos. Segundo a lenda, trata-se de uma maldição fruto da ganância humana e, por isso, de tempos em tempos, os monstros retornam.
Willian e Tovar são convidados a lutar com os chineses. Eles têm suas armas e os chineses um arsenal variado. A arma chinesa mais importante é formada por um cabo que prende o guerreiro e permite-o descer para atacar o inimigo. Ela esconde o segredo de suas vitórias: a confiança. Isso porque esse cabo é preso por um companheiro e nunca é conferido pelo guerreiro.
William, um dos mercenários, está acostumado a não crer em ninguém e a ideia de confiança apresentada pela general chinesa Mei o perturba. Não à toa, pois ele e o amigo muito mais que mercenários são, também, ladrões. Inclusive um dos objetivos deles era roubar o pó negro (pólvora) dos chineses. Todavia, o encontro de Willian com Mei leva-o a questionar a sua noção de “ser mercenário/ladrão”, produzindo um conflito entre o que vivencia com o amigo e Mei. A questão do desejo coloca-se e leva-o a se reinventar, a lutar por algo além de “comida e dinheiro”. A presença da general Mei quebra seu sentido de vida de roubar e matar para obter algum ganho.
Ele emplaca com os chineses em uma nova luta, dessa vez com um sentido outro, pela sobrevivência da humanidade (não apenas os seus interesses), afinal se não conseguirem deter as criaturas, elas podem aniquilar a humanidade. Para isso, tem que fazer difíceis escolhas com ganho e perdas. Nisso, a radicalidade do desejo é colocada à prova e mostra como o vínculo amoroso sustenta o “aparente” insustentável, movimentando o personagem principal a querer sempre reencontrar Mei. Esse amor é semelhante à mola do tratamento psicanalítico: a transferência – a suposição de que o outro porta algo que diz de mim, sabe algo que não sei.
Tudo se passa na perspectiva de que “parece” (semblante) que eles têm uma relação afetiva. A divisão subjetiva de Willian, entre o bem e o mal, vai sendo trabalhada à medida em que os monstros são combatidos. Em meio à angústia de uma morte anunciada, ele é chamado a criar meios para vencer os monstros e para isso é necessário conhecê-los. Quanto mais Willian sabe sobre os monstros, mais reconhece algo em si, que o permite rescrever sua história.
A Grande Muralha parece tratar com arte, aquilo que os sujeitos vivenciam, ou seja, as muralhas que constroem em torno de si para “separar” os seus monstros. Entretanto, a “in-diferença” com relação eles pode ser mortífera. O sofrimento psíquico decorre dessa guerra interna com os nossos monstros. Matá-los significa ser morto também, pois eles coabitam em nós. Ao lidar com tais monstros, um psicanalista tem a tarefa de levar o sujeito a lhes perguntar: o que queres? Só assim, pode-se abrir uma aposta nova, que inclua anjos e demônios; amor e desejo.
(*) Psicólogo e Psicanalista. Mestre em Psicologia (Psicanálise) pela Universidade Federal de São João Del-Rei, onde também contribuí como pesquisador. Especialista em Teoria Psicanalítica. Colaborador do Jornal Folha de Varginha e Blog do Madeira. Editor do site Janilton Psicólogo (www.janiltonpsicologo.com.br). Coordenador do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Psicanálise, Interfaces. Contato para atendimentos psicológicos (35) 3212 6663 / 99993 6663.
Conteúdo publicado, originalmente, em Jornal Folha de Varginha, 2017.
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