Hoje me cabe escrever… Escrever sobre a metáfora e metonímia desta pandemia…
Sobre a cegueira… Um outro ensaio sobre a cegueira…
Sobre atravessamentos e defesas… Sobre desamparo, perdas…
Caos e ordem… Sobre a curva da evolução….
É fato que a pandemia aí está para nos mostrar que não estamos e não somos imunes… Uma vacina virá e outros vírus virão… Não somos imunes à vida, com seus desafios, suas doenças orgânicas e psíquicas, seu sofrimento.
Quem nunca sofreu? Quem nunca sentiu medo, desamparo, vontade de retornar para um lugar de segurança, ou ainda pular para outro, mais à frente? A evolução não se dá em saltos. Se não é possível voltar, tão pouco saltar. Precisaremos atravessar…
Travessia com riscos, angústias, medos, mas que só é possível fazer atravessando…
Atravessaremos todos ao mesmo tempo? Com as mesmas perspectivas? Pelo mesmo caminho? Com a mesma visão? Certamente que não, isso não é possível… Somos seres únicos.
Seja pela pandemia, com riscos à nossa vida e saúde, com o caos social administrado…
Seja por essa desastrosa fase da vida humana, submersa num modelo político e socioeconômico capitalista autodestrutivo, com seu modo de vida neoliberal mortífero…
Seja por estas estranhas relações em que tentamos dizer para outro ser humano de nossa humanidade… Ser humano que parece ter perdido sua humanidade na miséria ou na ilusão de sua segura bolha individualista…
Seja num lugar ou em outro, não atravessaremos todos de uma vez, mas um a um. A passos de formiga e sem vontade, como dizia a música…
Mas não sem um por quê e outro para quê.
A pandemia traz a lição de que precisamos criar imunidade contra um vírus, que pode ser mortal. Imunidade que se cria com anticorpos naturalmente produzidos pelo organismo ou com vacinas, que estão sendo mundialmente estudadas e desenvolvidas. A vacina, como prevenção, requer um tempo maior.
Estamos aprendendo que nossa arma mais poderosa é o isolamento, é a redução do contato físico e, por consequência, do contágio.
Estamos aprendendo que não podemos pegar o vírus todos de uma vez, mas que se ele irá, certamente, circular (e disso não temos absolutamente nenhum controle, neste momento), que assim o faça devagar (isso podemos controlar).
É a tal da curva… Vamos suavizar o pico da curva (e eu nem sabia que curva tinha pico!).
Não sei porque tudo isso se ligou (na minha cabeça, é claro) à cegueira que acomete as pessoas (na atualidade?). Brasileiros, alguns conhecidos, outros próximos. Também estrangeiros, seres humanos por aí, mundo afora. Senti ódio dessa cegueira, que até pouco tempo (será?), também me acometia.
Cegueira quanto a esse sistema econômico autodestrutivo e exploratório, do qual nós, aqui privilegiados lendo isso, usufruímos dia após dia.
Cegueira sobre o que estamos fazendo com a Terra, nossa mãe.
Cegueira sobre o que estamos fazendo uns com os outros, filhos da mesma mãe, Terra.
Como se livrar dessa cegueira? Por que as pessoas não enxergam?
O que faz alguém pensar que esse governo desastroso é bom? Que não havia alternativa melhor?
O que faz alguém pensar que o capitalismo é a melhor das alternativas, frente a regimes opressores como o comunismo?
O que nos mantém exatamente onde estamos? Uns mais cegos que outros?
O que faz com que a humanidade caminhe a passos de formiga e sem vontade?
Não podemos todos passar pela pandemia juntos, no mesmo lugar. Precisamos nos isolar. Precisamos deixar que o vírus atravesse a humanidade devagar. O sistema de saúde não comporta uma humanidade inteira doente, ao mesmo tempo. A vacina requer um tempo para ser descoberta. É criando anticorpos singulares, um a um, longe dos outros, que os danos serão menores.
Assim também não podemos enxergar, todos, o que se passa, ao mesmo tempo e do mesmo ponto de vista.
Precisamos suportar e aprender a enxergar, aos poucos, primeiro uns, depois os outros, sozinhos: nossas perdas, nosso desamparo, nossa humanidade.
Afinal, não haveria profissionais da saúde suficientes para atender um surto coletivo, caso todos acordassem, ao mesmo tempo, para essa realidade destrutiva criada e sustentada por todos nós, narcisicamente. Surto que culminaria em mais violência, contra si mesmo e contra os demais.
A ‘vacina’ pra isso também requer um tempo…
É enxergando aos poucos, um a um, fazendo nossos furinhos, aqui e ali, que também os danos serão menores.
Sempre houve na humanidade quem estivesse à frente do seu tempo, enxergando um pouco mais e abrindo caminhos, criando alternativas. Sempre houve aquele que se distancia da “manada”, ou mais à frente, ou mais de lado, ou simplesmente parando pra se perguntar onde está indo.
Sempre houve alguém como nós. Uns mais corajosos e criativos. Outros fazendo seus furinhos. Estamos sozinhos e não estamos.
De fato, é preciso atravessar com “segurança”. A pandemia e a crise (evolutiva).
A evolução não se dá aos saltos. Nessa curva, também não pode haver pico.
Nossas defesas, que operam muitas vezes como falta de vontade, nos movem a passos de formiga, necessários para que atravessemos com menos danos possíveis.
O processo civilizatório é assim.
Requer um certo abuso. Fomos ‘retirados’ de nosso estado de natureza.
Requer algumas defesas. Precisamos ser afetados com cuidado.
Requer um pouco de cegueira. O real é inapreensível e a realidade material se produz a partir da realidade psíquica. Vemos o que somos.
Requer paciência, solidariedade, senso de comunidade.
Requer criatividade, distanciamento, ousadia e coragem.
O processo civilizatório é o que nos permite ser algo mais do que a natureza, sem nunca prescindir dela, sob pena de auto-aniquilação.
Ou vamos todos “juntos”, ou não vamos. Na pandemia e na vida.
Porque somos humanos.
Para que possamos nos humanizar um pouco mais.
Dúnia Ferreira Maia
Operadora do Direito, trabalha no TJMG, integrante do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise Interfaces, estudante do curso de Psicologia do Grupo Unis/MG.
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