Janilton Gabriel de Souza(*)
Parece estranho falar sobre a traição como primeiro tema do ano nesta coluna. Mas, em verdade, talvez seja muito pertinente, pois não é nesse começo de calendário que muitos juram fidelidade ao que querem? É interessante que, ao indagarmos às pessoas sobre o tema, ouvem-se expressões típicas, como “imperdoável, perdoável, aceitável e/ou inaceitável”. Parecem não dizer nada os pares de opostos em torno do tema. Se tornarmos isso na dimensão moral, talvez às negativas em mais se encaixem. Todavia, afirmar ou negar em nada contribui nesta discussão.
A psicanálise guia seus trabalhos contrariamente a uma moral, algo que é pré-definido pela sociedade. Seu olhar se volta para o “um”, para cada sujeito, pois, como nos lembra Nilton Bonder, “o olhar dos outros não enxerga a essência, somente a forma”. Deste modo, a psicanálise se baseia em uma ética: a ética do desejo inconsciente. É sob este ponto de vista que analisaremos a traição.
Nilton Bonder, escritor rabino, embora não seja um psicanalista, possui um olhar singular em torno do tema. Ele destaca em seu livro “A Alma Imoral” que “há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade”. Exemplificando, há relacionamentos amorosos que, apesar de se situarem dentro de uma aparente fidelidade, esboçam marcas da traição. Isto acontece porque, diante de anos negando que não se quer mais aquilo, a pessoa insatisfeita dá dois passos para sair e três a trás para ficar. Porém, quando se faz um movimento diferente, pode-se ser fiel ao que se deseja e, sustentar isso, pode ser uma verdadeira libertação. Em outro caso, a pessoa deseja muito fazer um curso. Quando está por terminar, sai sem se perguntar por qual razão abre mão daquilo que quer.
Por fim, sei que muitos acharão um absurdo o que disse. Porém, como ressaltei, a ética do desejo é de outra ordem. Posso até trair o outro, mas a pior traição não se encontra nos recônditos da moral. A pior traição é aquela em que traímos o que nos habita: o desejo. É claro que lidar com esse desejo é uma questão de vivência analítica, mas, sobretudo, uma questão da vida. Muitas pessoas descobrem com o tempo que sustentar uma coisa para agradar o outro ou não sustentar o que se anseia é um preço que se paga com penas de sofrimento, pois a pior traição é a traição de si mesmo, de seu desejo.
(*) Psicólogo clínico atuante a partir da psicanálise, educador e pesquisador da UFSJ. Colaborador do Jornal Folha de Varginha e Blog do Madeira.
Texto originalmente publicado no Jornal Folha de Varginha e também disponível em:
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