Janilton Gabriel de Souza*
Há os que dançam com beleza e leveza e os que dançam na vida, patinando nas dificuldades e nas mesmas repetições. Saí com essas provocações ao assistir ao musical “Because – O Espetáculo”, que traz um lindo espetáculo a partir das músicas dos Beatles, narrando a história de alguém em conflito psíquico. Cenas de decepção vistas pelo personagem que o leva a um sofrimento. A dor é refletida na sua dificuldade em se lançar aos movimentos da dança, isolando-se em vários momentos.
Ao abrir “O Estranho” de 1919, Freud, criador da Psicanálise, descreve: “um psicanalista se sente impelido a pesquisar o tema da estética, mesmo quando por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir”. Provocação interessante sobre a beleza como uma qualidade do sentir, levando-nos a distinguir maneiras positivas das formas negativas. As maneiras positivas, temos o prazer de ver e sentir. Já ao que refere-se às maneiras negativas, temos o sentir medo e a dor que tais razões possam provocar, levando o sujeito a esquivar-se, não querendo olhar para isso.
Como suportar ver o que nos é árduo? Uma parte dessa resposta encontrei em uma música, que veio à memória: “Because of you” (Kelly Clarkson, 2004). A associação dela é para além do título (because, em tradução livre: por causa), uma maneira de recolocar o que é apresentado na peça: “Por Sua Causa / Eu não vou cometer os mesmos erros que você / Eu não vou me permitir causar tanta miséria ao me coração / Eu não vou desmoronar igual você, você caiu com tudo. Eu aprendi do jeito difícil a nunca deixar chegar tão longe”.
Na música, há uma negativa daquilo que não se quer fazer igual ao outro. Entretanto, no inconsciente não existe negação, o que nos leva à reflexão de que aquilo que é negado no outro é reiterado na ação do próprio sujeito. Em outras palavras, o sujeito nega, mas faz igual ao outro ou repete as mesmas respostas e caminhos de outrora.
Em “Because”, a possibilidade de sair de seu núcleo de sofrimento é encenada pelos bailarinos ao som do coral que canta as músicas dos Beatles, algumas delas servindo como narrativa da forma de sentir o padecimento. Para destacar esse estado do personagem, as roupas são retratadas em cores pretas, o que nos leva à noção do apagamento do sujeito ou sua mortificação. Frente a isso, as repetições aparecem como meios de elaborar aquele conteúdo vivido pelo sujeito.
Essas repetições podem instalar-se em um ciclo sem fim, mas quando escutadas e colocadas a trabalho podem ser um meio de passagem. Para sustentar essa transição, o amor é o mecanismo fundamental. Amor tomado por Freud na noção de “transferência”, que é um vínculo artificial criado pelo paciente com o psicanalista. Esse vínculo sustentado, como em outros laços, o levará estabelecer nessa relação as mesmas repetições ou maneiras de se posicionar nas escolhas de sua vida. Diante delas, o psicanalista pode levá-lo a um reencontro com algo que é seu, a uma nova construção.
Em “Because”, a música cria uma beleza do sentir, que marca, mesmo com melodia triste, um ritmo, necessário para continuar a existir quando os aparentes sentidos ruem. A dança é propriedade de um movimento e sustentação de um ritmo, que pode marcar uma beleza, ou, nas palavras de Freud, um modo de sentir. Evidentemente, esse atravessamento não é sem dor, daí o suporte de um outro, o psicanalista, capaz de escutar esse ritmo e colocar o sujeito nele, para promover novas melodias com novas cores.
No musical, essa transformação é ouvida ao ritmo dos Beatles, que mesmo para aqueles que não conseguem traduzir as letras inglesas veem ressoar a beleza no embalar do som. Música encenada. Talvez por isso vemos a transição da cor da roupa do personagem, de preto para o vermelho. Em outras palavras, do fúnebre ao embalar do amor capaz de conduzir o sujeito de volta aos trilhos de seu desejo com as múltiplas belezas da vida.
(*) Psicólogo e Psicanalista. Mestre em Psicologia (Psicanálise) pela Universidade Federal de São João Del-Rei, onde também contribuí como pesquisador. Especialista em Teoria Psicanalítica. Colaborador do Jornal Folha de Varginha e Blog do Madeira. Editor do site Janilton Psicólogo (www.janiltonpsicologo.com.br). Coordenador do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Psicanálise, Interfaces. Contato para atendimentos psicológicos (35) 3212 6663 / 99993 6663.
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