Casados há 30 anos, os psicanalistas gaúchos Diana e Mário Corso estudam a influência dos contos de fada e do cinema na nossa personalidade. Autores de Fadas no Divã e A Psicanálise na Terra do Nunca, eles destrincham o espelho das histórias em que nunca cansamos de nos mirar. E aqui falam de sonhos, fracassos, violência e sexo, na vida real e na ficção.
Por Deborah de Paula Souza
O jardim suspenso dos Corso, num confortável apartamento em Porto Alegre, traz algumas pistas sobre os donos da casa, os psicanalistas Diana e Mário Corso. A composição das plantas é obra de Mário, 53 anos. Além de saber cozinhar, ele é um jardineiro prático. Escolheu exóticos cactos para garantir a sobrevivência do verde quando a família viajasse e ninguém pudesse regá-los. Já Diana, 52, confirmou a tese do marido de que “as mulheres desorganizam o mundo”, adornando o jardim com o verdejante jasmineiro que acena com flores e perfumes, mas demanda água todos os dias. Casados há 30 anos, eles moram com as duas filhas Laura, 23, e Júlia, 20, e o velho Bilbo, um buldogue francês batizado com o nome dos hobbits de J.R.R. Tolkien, o autor de O Senhor dos Anéis.
Da paixão do casal pela cultura e, sobretudo, pela narrativa, nasceram dois livros escritos em parceria, Fadas no Divã – Psicanálise nas Histórias Infantis (2005) e A Psicanálise na Terra do Nunca – Ensaios sobre a Fantasia (2010), ambos pela editora Artmed. Anos antes, em 2002, Mário recebeu menção honrosa do prêmio Jabuti, com Monstruário – Inventário de Entidades Imaginárias e de Mitos Brasileiros, outra de suas publicações. Com frequência, os dois escevem artigos para diversos veículos e, em breve, as crônicas de Diana publicadas no jornal Zero Hora devem virar um novo livro. Em nosso primeiro encontro, no consultório de Mário e Diana, fui convidada a sentar num divã vermelho e mergulhei direto no universo profissional do casal. No segundo, na casa deles, conheci o outro lado dos Corsos as filhas, o cachorro, a cozinheira e o poeta Fabrício Carpitejar, amigo da família, que chegou com o filho para o almoço já fazendo um alerta: “Cuidado com o sofá desta sala”, disse. “Quem senta ali, começa a falar verdades e absurdos.” Mas, era tarde, eu já estava sob o efeito das palavras corsárias de Mário e Diana, a quem pedi tudo: explicações impossíveis, histórias de amor e o mapa secreto das mulheres.
MARIE CLAIRE – O que acham das versões hard das fábulas no cinema? No longa Branca de Neve e o Caçador, a mocinha é uma guerreira, e o novo Peter Pan, que sai no ano que vem, é um matador de crianças…
DIANA CORSO – Uma narrativa é sempre atual, o relato sai conforme a época. O mesmo acontece quando a gente conta a vida, a perspectiva é de agora. Hoje, o que mais assusta é a passividade. Não basta ser salva pelo caçador, é preciso lutar, participar da batalha. Popularizou-se a ideia de que a vida de cada um deve ser uma jornada que valha a pena. As crianças atuais não carecem de maniqueísmos simplórios, mas no fundo esperam – e nossa criança interior também – que o herói vença. Elas precisam ser espertas, até porque seus pais, mesmo os mais amorosos, andam ocupados, confusos, sem pensamentos conclusivos sobre nada. Nesse contexto, pode haver um Peter Pan mau. Aliás, no livro original, de James Matthew Barrie (1911), Pan era um péssimo líder, deixou Wendt e seus irmãos várias vezes à mercê do perigo, além de matar os meninos perdidos que o desagradam. A pasteurização do herói veio com o Walt Disney, mas eu recomendo o desenho, pois ele conserva o essencial do livro. Hoje, as partes mais pontudas das histórias – violência, fraqueza moral dos personagens, sofrimento – saiu dos romances adultos e invadiu a Terra do Nunca, o lugar onde as crianças brincam. Assim, elas aprendem mais cedo a pensar por si mesmas.
MC – As histórias nos ensinam a lidar com coisas difíceis como o medo de crescer, o abandono, a morte?
MÁRIO CORSO – Sem dúvida. Elas nos ajudam a viver com o nosso tamanico de nada… A pessoa se sente menos só, descobre que não é a única que tropeça. Todos conhecem o Charlie Brown, ele é um perdedor, menos popular que seu cachorro. Um jogador que não ganha a partida, mas continua jogando, como é preciso fazer na vida. Ele nos auxilia muito, sem ser obra de autoajuda.
MC – Qual é sua cr´tica aos livros de autoajuda?
MÁRIO – Eles inflacionam a auto importância, vendem a ilusão do poder e negam completamente o fracasso. Mas qualquer transformação real passa pelo reconhecimento de onde é que a gente erra, perde e sofre.
DIANA – As obras de autoajuda tentam manter o leitor numa eterna sexta-feira à noite, quando existe a promessa de gozo total. E o Charlie Brown nos ampara na depressão do domingo, quando se vê que não deu para viver mil aventuras incríveis – e é com essa pouca coisa que cada um terá de começar a semana.
MC – E as histórias que contamos sobre nós mesmos? São um tipo de ficção?
MÁRIO – Sim, esse é o ponto. Uma grande questão do pensamento científico é discernir o real da fantasia. Lidamos com essas categorias na vida, mas nas pessoas isso está extraordinariamente misturado. O senso comum diz que o caminho da cura de alguém passa pelo fato de ela aceitar a realidade e abrir a mão da fantasia. Só que isso não existe. A gente nunca deixa de fantasiar.
DIANA – Desconfio da ideia de “cura”, pois parece que um dia você pode ficar pronta e acabada. Isso não acontece.
MC – Nossos devaneios podem ser fontes de angústia?
MÁRIO – Claro, por isso é preciso desfazer alguns. O homem que diz que se não tivesse casaod e tido filhos, teria viajado, disparado na carreira, é um exemplo. Quem garante que isso tudo teria acontecido? Ninguém. É pura fantasia e pode ser apenas uma justificativa para as impotências dele. Melhor desfazer a miragem e lidar com a família que construiu.
DIANA – Uma fantasia neurótica comum é o desejo de cumprir a expectativa dos pais – ou seja, aquilo que cada um imagina que deveria ser ou fazer para satisfazer a família. Antigamente, os pais explicitavam logo, dizendo para os filhos serem médicos, advogados. E hoje eles pedem coisa pior: que sigam os próprios desejos e sejam felizes.
MC – Por que isso é pior?
DIANA – Porque a carreira de advogado, uma pessoa pode seguir ou não. Já fazer o que quiser e ser feliz é muito difícil. A maioria dos desejos humanos são inconfessáveis, somos egoístas, tarados e megalomaníacos. E a missão de “ser feliz” é assumir um compromisso de gozar mais do que os pais gozaram. Nesse caso, ninguém poderia se cansar do trabalho ou do parceiro nem se arrepender das decisões. E quanto aos desejos confessáveis: é bem difícil identifica-los e realiza-los. Ninguém faz o que quer, mas o que pode, o que consegue. Essa missão de ser feliz acaba sendo um peso.
MC – Que tal o best-seller erótico da hora? Vocês leram?
DIANA – Não consegui ler o Cinquenta Tons de Cinza. Achei mal escrito e olha que eu adoro literatura pop, devorei os três volumes de Crepúsculo e achei ótima a saga Millenium. Para quem gosta de sadomasoquismo sugiro A história de O. de Pauline Reage, que acabou de ser reeditado. Aí sim dá para ver para que serve um chicotinho (risos). O Cinquenta Tons reflete mais uma nostalgia da submissão feminina. E Crepúsculo – em que o clã dos vampiros vive junto há séculos – é uma nostalgia da antiga família. Mas a autora, Stephene Meyer, fez um favor às novas gerações: autorizou-as a ter medo do sexo. Isso já não era mais permitido aos jovens. Todos teriam que estar prontos para transar a qualquer momento. O fato de a transa dos protagonistas demorar umas mil páginas foi decisiva para o seu sucesso e, de certa forma, liberou os jovens desse peso também.
MC – Afinal que vantagem herdamos da tao falada revolução sexual dos anos 60?
MÁRIO – Ela mudou nossa vida para melhor e um dos grandes ganhos foi a tolerância a todas as modalidades de relação: hetero, homo, bissexual. Porém, as promessas de felicidade ligadas à liberação sexual não se cumpriram. As pessoas liberadas se beneficiam disso, mas não se tornaram mais profundas, geniais e pacíficas como insinuava o lema “Faça amor, não faça a guerra”. Olhando em retrospectiva, acho que essa expectativa grandiosa em relação ao sexo foi um erro de alguns psicanalistas, entre eles, o Wilhelm Reich. Suas teorias cristalizaram os desejos de uma época e uma geração libertária.
MC – Essa decepção aparece na produção cultural?
DIANA – O filme Shame (2011, dirigido por Steve McQueen) ilustra isso. O protagonista é compulsivo, transa sem parar e não se satisfaz nunca. O sexo entra no lugar da droga, o que é um desencanto em relação aos sonhos de Woodstock. A revolução sexual deu certo, mas não eliminou os conflitos, nem poderia. Imaginávamos que deixaríamos de agredir uns aos outros se pudéssemos amar e transar com liberdade. Acabamos descobrindo que sexo e amor nem sempre andam juntos, podem se combinar e descombinar de infinitos modos. A plenitude não aconteceu.
MC – Quais são os ideais amorosos contemporâneos?
DIANA – Acredito que eles mudaram do amor para a amizade. Isso já aparecia em Harry e Sally – Feitos um Para o Outro (de 1989, dirigido por Bob Reiner), em que um casal de amigos acaba se apaixonando. O amor amigo é um ideal contemporâneo. Várias séries de TV, a partir de Friends, mostram como a amizade é cheia de tolerância, perdão e senso de humor. O problema é que uma mulher pode achar adorável aquele amigo beberrão, mas não teria a mesma paciência se ele fosse seu namorado (risos).
MC – Harry Poter, O Senhor dos Anéis, Avatar… Ficamos viciados em magia?
MÁRIO – A magia é anterior à religião, mas com a decadência dessa última, volto com tudo, porque combina com a onipotência contemporânea. Na religião, você supõe a existência de um ser maior e humildemente pede proteção. Na magia, acredita que pode fazer algo para interferir no mundo, cria rituais para isso.
DIANA – A relação mãe-bebê é a matriz da magia. A mãe “adivinha” os desejos do filho, respondendo a eles, com alimento, aconchego etc. Imagine o ponto de vista do bebê: ele estende os bracinhos para um objeto que… flutua até ele! Ao crescer, a criança percebe que nem tudo virá voando. É a perda da onipotência mágica.
MC – E a devoção ao Tolkien, autor de O Senhor dos Anéis?
MÁRIO – Na nossa casa, brinco que o Tolkien entrou no lugar da religião. Sou ateu, mas venho de família católica e a Diana, que nasceu no Uruguai mas veio para o Brasil com 5 anos, de família judia. Não demos formação religiosa às nossas filhas, mas eu lia o Tolkien para elas. Mais do que uma fantasia, ele criou um lugar, com geografia, língua e história. Inventou uma mitologia própria em que quase não há mulheres, apenas Galadriel, que sacerdotisa. O enredo magnetiza porque é maravilhoso e – na minha opinião – porque o autor tirou o sexo da história. É um sonho para os pré-adolescentes, pois, sem mulheres e sexo, o mundo fica bem mais fácil de entender.
MC – Você acha que a mulher complica a vida e as histórias?
MÁRIO – Claro! Por sorte, elas desorganizam tudo (risos).
DIANA – Naturalmente, o mesmo não acontece com os homens, porque eles são previsíveis. Quem nos desorganiza psiquicamente somos nós mesmas.
MC – Recomendam algum autor especial para lidar com o turbilhão feminino?
DIANA – Virginia Woolf, por quem ando apaixonada. No final do livro A Room of Ones’ Onw (traduzido aqui como Um Teto Todo Seu), ela diz às mulheres: “Vocês conquistaram um quarto todo seu. Cabe a vocês mobiliá-lo”. A minha tese é que devemos deixá-lo vazio. Porque toda vez que uma mulher se recolhe, e olha criticamente o mundo lá fora, ela o desmonta. Não fica pedra sobre pedra. Nem time, nem partidos, nem identidades sexuais fixas… Nós temos essa capacidade de ver o vazio de tudo. Por isso somos tão frágeis.
MC – Considera que mulheres fortes do século 21 suportam esse lugar tão feminino?
DIANA – Não, elas habitam os lugares masculinos sabendo dos limites desses espaços. Por isso tantas sofrem de depressão, ansiedade, pânico. Quando tocam o vazio, se assustam, tentam preenche-lo com remédios ou outros objetos. Mas até o filho, que preenche o útero, uma hora sai. E retornarmos ao vazio, nosso lugar secreto, que nos desestabiliza, mas também dá um outro tipo de força. Sou uma otimista e confio que aprendemos a viver com o vazio, sem tanto medo.
MC – No livro A Psicanálise na Terra do Nunca, vocês abordam o que a Virginia Woolf chamou de “O anjo da casa”, a assombração da mulher abnegada, que nos acusa de não sermos mais servis. Qual é a versão masculina dela?
MARIO – O fantasma do homem forte. Como se os antepassados fossem mais viris e corajosos do que nós. Muitos sofrem por isso e outros correm o risco de se tornarem cretinos. Caso dos hooligans, aqueles torcedores fanáticos e violentos. Pensam que ser homem é dar porrada.
MC – Vocês defendem que a literatura facilita a comunicação entre as pessoas. Como?
MÁRIO – Pensamos na literatura ampla, que inclui cinema, quadrinhos, música, poesia etc. A cultura oferece uma espécie de educação sentimental. Ninguém chama o filho ou o aluno e diz: “Senta aí, agora vou te ensinar como é amar”. Nós aprendemos isso na ação, com a vida e com a arte. Pais e mães narrativos ajudam muito os filhos. As histórias abrem para as crianças os significados do mundo, por isso precisamos conta-las.
MC – Como veem histórias que nascem nas redes sociais?
DIANA – Não há motivo para preconceitos. Bem ou mal, estamos buscando palavras para nos apresentar. Eu não considero menores as relações que começam no virtual, nem é só ali que simulações. Todo mundo edita o seu melhor ângulo quando conhece alguém, seja na festa ou no Facebook. Florear ou mentir pode acontecer em qualquer situação.
MÁRIO – As redes são as novas praças. Encaro com otimismo. É sinal de saúde a busca de contato. Quando há isolamento ou a ideia de que outro não importa, aí sim surgem os problemas.
Mc – Como é o clima entre vocês na hora de escrever juntos?
DIANA – Beligerante! Uma vez, tínhamos parado o trabalho por um tempo e, quando retomamos, tive um faniquito com o Mário: “Não entendo o que tu queres dizer aqui, isso é diferente do que vinha sendo tratado!”. Achincalhe o quanto pude, enquanto ele me ouvia calmamente. Até que ele disse que as respostas estavam comigo – pois quem tinha escrito aquilo era eu, não ele! (risos). Sou excessiva. Ele me estrutura e enxuga. Às vezes, dós e a gente briga, mas um não publica nada sem mostrar para o outro.
MÁRIO – É pelas nossas diferenças que as coisas acabam dando certo. Eu sou quase lacônico. Entro com os ossos, Diana com a carne.
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