Janilton Gabriel de Souza*
“Perfect” (perfeito), a palavra circulou por criações diversas este ano. Ao “Maralto”, apenas alguns podem ter acesso, discurso da primeira série brasileira, 3%, produzida pela Netflix. A série sintetiza um sintoma social: a tentativa de implantar a perfeição. Paradoxalmente, decorre o sofrimento naqueles que tentam achar na ideia de perfeição um caminho para a felicidade (completa e perfeita, por que não?).
Para que o discurso de perfeição persista, invariavelmente, há uma tentativa de controlar tudo e eliminar as diferenças. Assim, criam-se trincheiras: ama-se aquilo que corresponde ao seu próprio ideal e odeia-se o que o contraria. É a polarização e a surdez narcísica, na qual não se escuta aquilo que é contrário à imagem de perfeição que, idealmente, se tem de si.
No Interfaces (Núcleo de Pesquisas e Estudos em Psicanálise), encerramos a leitura do texto “O mal-estar na civilização”, de Freud. Ficamos intrigados com o funcionamento da instância psíquica Super-eu. Ela seria responsável por barrar o sujeito de realizar certas vontades. O “Super-eu” é uma herança do Complexo de Édipo, momento fundante na história de um sujeito, segundo o qual um dia a criança teria desejado sua mãe e a morte do seu pai, para consequentemente, usurpar o lugar paterno. Entretanto, é porque uma Lei se coloca e impede que isso aconteça que o sujeito pode desejar outras coisas pela vida.
Parte desse conflito fica alojado no “Super-eu”, levando a rememorar o sentimento de culpa e condenação nas diversas circunstâncias em que infringe a convenção social, a lei jurídica. Mas o funcionamento é ainda mais “complexo”. A culpa é uma condenação que age nos pensamentos, atos, palavras e omissões, como se clamam na oração cristã. O Super-eu segue a lógica de satisfação na insatisfação: ao transgredir vem a culpa. Às vezes, certos atos são feitos como uma forma de ser punido na realidade. Um exemplo são os crimes. Em todo ato criminoso existe uma vontade de ser condenado. A punição alivia a culpa que, em alguns casos, é mais terrível que a condenação jurídica.
Outro caminho de calmaria da culpa é através do mecanismo de defesa, que Freud denominou de projeção. Nela, o sujeito condena outra pessoa, por aquilo que é seu. O moralista é um ótimo exemplo disso, ele censura um desejo próprio e o condena em quem o realiza. Movido por essa lógica de funcionamento, pode-se apontar o aumento da criminalidade e do discurso higiênico. Esse último é a tentativa de conduzir alguém a agir de acordo com as próprias predileções. Aqueles que não seguem o seu ideal devem ser eliminados. É a busca da raça pura, tal como se viu um dia com Hitler e o nazismo. A pureza da vez é a eliminação da política ou, para ser mais preciso, dos políticos. Transformam-se todos eles em corruptos e implanta-se o imperativo de “limpeza”, a todo e qualquer custo. Em seu lugar, a ascensão dos chamados gestores, que, por não estarem, supostamente, na categoria de políticos, seriam, só por isso, livres de corrupção, afinal são “administradores”. Em outras palavras, o mal sempre parece estar do lado de fora, pelo menos esse é o sonho infantil dessas pessoas.
Vivemos uma pobreza subjetiva. A dificuldade em reconhecer-se em toda encrenca que se queixa. Mas isso não é novo e nem será com o “Novo” Ano. A saída não é coletiva, mas individual. Nesse sentido, é só ao se lançar na direção do desejo que se pode quebrar o ciclo de satisfação às avessas do “Super-eu” e instaurar uma nova relação do sujeito com a falta, com aquilo que nunca será perfeito. Essa dimensão do desejo está nas palavras do poeta Fernando Pessoa: “(…) é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta, porque o que basta acaba onde basta, e onde basta não basta. E nada que se pareça com isto deveria ser o sentido da vida…”.
(*) Psicólogo e Psicanalista. Mestre em Psicologia (Psicanálise) pela Universidade Federal de São João Del-Rei, onde também contribuí como pesquisador. Especialista em Teoria Psicanalítica. Colaborador do Jornal Folha de Varginha e Blog do Madeira. Editor do site Janilton Psicólogo (www.janiltonpsicologo.com.br). Coordenador do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Psicanálise, Interfaces. Contato para atendimentos psicológicos (35) 3212 6663 / 99993 6663.
Conteúdo publicado, originalmente, no Jornal Folha de Varginha em dezembro de 2016.
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